QUAL É, EXATAMENTE, O MEU TRABALHO:
NO CASO DE ASPERGERS E AUTISTAS
Esclarecimento necessário (e dúvida quanto a uma definição):
Confesso que não sou boa em interpretação de textos. Se isso não fica tão visível é porque eu tenho um tanto vasto repertório de conhecimentos para uma mulher comum criada no interior, muito dado pelo fato de ser tradutora e, assim, ter que ler obras diversas. E também porque sou atraída pelos detalhes (não, como querem os “definidores de aspergers e autistas, “apegada” a detalhes!). E, com isso, antes de interpretar um texto, faço a lição de casa: vasculho tudo que tenha a ver com o livro que tenho nas mãos.
Assim, para vencer essa dificuldade de interpretar um texto, ao ler um livro denso, mesmo que pareça enganosamente curto e simples – como um de Tolstoi, por exemplo, A Morte de Ivan Ilitch -, eu preciso antes ler a sinopse, artigos sobre a obra, investigar o autor, sua época, suas ideias, suas tendências, entender o recado, comparar com as costumeiras ou possíveis críticas e ainda observar os vieses dos críticos (eu jamais seria uma boa crítica de livros e filmes).
Só então – e se eu gostar do que encontrei em tudo isso – eu leio o livro em si. Sinto ainda a necessidade de ler em mais de um idioma, para chegar ao mais puro daquilo que o autor desejou transmitir (Tolstoi, por exemplo, escreveu em russo). Se possível, ainda parto para aprender o idioma original do autor, e é por isso (por Tolstoi e outros), também, que agora estou empenhada em aprender russo. [É certo que penso nas guerras. E se um dia a Rússia resolver invadir o Brasil, já sucateado para esse propósito, talvez eu possa salvar minha vida e de meus filhos, falando o idioma do invasor, como muitos fizeram na II Guerra. Isso não é uma “viagem”. Há russos e russos, por exemplo, há Tolstoi e Putin. Como dizem no INSS (se não acredita), “é só aguardar”.
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Mas tudo isso é para dizer que, se não sou boa em interpretação de textos e tenho que dar essa volta toda, imagine você que a minha dificuldade é mil vezes maior quando tenho que interpretar a mim mesma. E preciso que as pessoas entendam qual é o trabalho que eu faço e por que ele é importante.
O que interessa, aqui, é definir:
Qual é o meu trabalho, no autismo?
Pensam que é o de dar toscos depoimentos enquanto asperger?
Não. Já incorri neste erro, no início. Isso levou as pessoas a se esquecerem de que sou uma profissional. Psicóloga, no caso, para quem não sabe. Mesmo assim, muitos não compreendem qual é a minha proposta e o que eu ofereço. Há os que admiram o meu trabalho sem saber exatamente qual seja ele, há os que odeiam sem saber e me excluem de eventos ditos científicos. Hoje, eu entendo isto. Não tenho a pretensão de exigir que os típicos funcionem direito, se nós também, para eles, não funcionamos direito.
Sou eu quem deve dizer qual é o meu trabalho, acho que devo isso às pessoas. Ou melhor, deveria ser eu mesma. Mas essa tarefa é, como eu já disse acima, uma dificuldade. Está muito claro para mim o que eu faço no mundo do autismo, porém, é difícil colocar em palavras que todos entendam.
Só uma coisa já deve ter ficado clara: é um trabalho solo, sem grupos, sem apoio, sem equipe, sem viagens de capacitação, sem recursos que não os da curiosidade, do esforço e das facilidades da internet.
Mesmo assim, eu consigo chegar a muito bons resultados e até a antecipar muitos passos. Coisa que mais me preocupa é não chover no molhado. Apresentar dados novos, para avançar passo a passo no conhecimento de autistas e aspergers aqui no Brasil, e não me dá prazer nenhum dizer que estamos com uns sessenta anos de atraso. Mas não podemos mais ver tantos repetindo sempre as mesmas coisas – quando não as mesmas desinformações. O autista tem pressa e a vida passa rápido. Ele precisa se entrosar no mundo enquanto ser vivo. Não adianta chorar e fazer homenagens depois. E nós temos que fazer um esforço conjunto para isso.
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Bom, enfim, qual é o meu trabalho, então? Como demonstrar a importância e a relevância do meu trabalho para que ele seja colocado no seu devido lugar e algumas mudanças aconteçam?
Pensa que escrever sobre isso está muito fácil? Não está. Vou tentar resumir, até onde eu mesma consiga explicar. Depois disso, a esperança é que alguém mais (imagino que um típico) possa sintetizar meu trabalho com mais precisão.
– Em primeiro lugar, não me proponho a opinar sobre nenhum método, processo ou técnica, dentre os que são aplicados, a não ser por algumas aberrações, quando universalmente muito evidentes, pois não aprecio concluir sem ter estudado a fundo e ter argumentos – acho que isso é ciência… – e, por alguma razão, ainda não tive interesse em fazer pesquisas exaustivas sobre cada um. Se tenho algumas preferências que foram boas para mim e para o meu filho, expresso-as dentro do devido contexto, no consultório ou em cursos e palestras, o que não quer dizer conclusões fechadas ou exclusão definitiva de método algum. Nem os que estão mais em voga, nem os que não estão.
– Em segundo lugar, considerando, a priori, todos os recursos como potencialmente viáveis, isso não quer dizer que eu não veja uma ordem de prioridade para que esses recursos sejam aplicados. Por exemplo, entendo que socialização não é o primeiro passo – e que “consertar o autista” não necessariamente o torna mais feliz ou lhe garante maior qualidade de vida. Ao mesmo tempo que aceito que, sim, há reparos a fazer. O que significa que há reparos a fazer nos próprios típicos também. Zero a zero.
– Em terceiro lugar, o que busco é mostrar a importância de, antes de um profissional, professor, pai, mãe, ou mesmo asperger adulto partir para a ação, é preciso que ele(a) pare para refletir o que deseja de verdade. É preciso planejar, mais do que executar de imediato qualquer atitude. É preciso examinar a sua ética pessoal. Se não sabe o que isso quer dizer, é preciso falar, então, sobre ética: O que estou prestes a fazer, ou a dizer ou ensinar, ou aplicar, vai beneficiar a quem, exatamente? Ao autista?
Como na história das três peneiras: O que estou prestes a fazer tem verdade? Tem bondade? E… tem necessidade?
Pensando mais longe: Tem lógica? Tem relevância? Tem algo de novo? Tem fundamentos? Tem a devida competência? Traz benefícios (ou aumenta a ilusão) para aspergers, autistas e seus pais?
Eu falo também sobre diagnósticos. E sobre as implicações atuais e futuras, para um autista, da forma de como é redigido o laudo diagnóstico. Em consultório, faço avaliação diagnóstica para aspergers adultos, ou no mínimo a partir de uns 14 anos, depois a manutenção com orientações, e muito importante é o trabalho de orientação a pais de aspergers e autistas pequenos(as).
Hoje em dia, para mim, é cada vez mais importante dar capacitação e assistência a pais de crianças autistas e aspergers. Os pais, mais do que ninguém, precisam de um norte. Isso pode determinar o futuro dessas crianças.
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Enfim, meu trabalho, acredito, é o de provocar para transformar. Fazer PENSAR, para ter mais clareza, depois, em questões pontuais.
Procuro mostrar que não se estuda o autismo utilizando apenas o autismo, mas muitas outras áreas do conhecimento, pois o autista está NO MUNDO, e não, como querem alguns, em um mundo isolado.
Nas empresas, tento abrir caminhos para a importância de aspergers e autistas inseridos no mercado, com um diferencial, que é uma miríade de detalhes esclarecedores. Mostrando também que são pessoas como outras quaisquer, apenas com funcionamento diferente, em alguns pontos, para melhor.
Diante desta tentativa de descrever o meu trabalho, que antecede (ou deveria anteceder) a preocupação com ações imediatas, preciso que alguém (como disse, um típico seria melhor, talvez) me diga: afinal, qual é o meu trabalho, ainda que diferente dos demais e parecendo fora da curva?
Meu trabalho é de abrir a estrada? Isso é uma PERGUNTA, não é uma sugestão.
Este artigo foi escrito pensando, de início, em mandar para o meu amigo e cientista Alysson Muotri. Sempre gosto de ter uma opinião dele. E acabou se transformando numa carta aberta todos. Mas ainda espero uma resposta do Alysson. É que estamos – Carise Lobo e eu – fazendo os preparativos para, talvez, abrir um canal no Youtube, que já tem nome: FALA, ANA!. Isso é o que vivem dizendo. Para eu falar. Daí o nome ficou.
Olhe que “Fala, Ana!” tem vírgula.
Obrigada pela leitura deste e por uma palavrinha. Será que expliquei ou confundi?
Ana Parreira – Campinas SP
villa.aspie@gmail.com
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