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COMO CRIAR PÁSSAROS – 1

Um diário da preparação do workshop, três meses antes e em tempo real

Dia 1

23 de outubro, 2017

São 4 horas da manhã, horário de verão. Tenho acordado todos os dias nesse mesmo horário, não importa o que eu faça para que o sono se prolongue um pouco mais. Durante o dia, consigo programar meu sono com os minutos contados, graças à hipnoterapia ericksoniana e ao meu mestre nessa arte, Ernest Lawrende Rossi, PhD, do qual fui tradutora. (“A Psicobiologia de Cura Mente-Corpo”.)

À noite, nem tanto. Alguns cães ladram na vizinhança, um carro passa, está escuro como uma cena de um filme no escuro. Chove. Faço um café.

***

Escrevo estas linhas porque, em 9 e 10 de fevereiro do ano que vem, 2018, pensei em construir um workshop de dois dias, COMO CRIAR PÁSSAROS, e já anunciei a data. Em pleno início de carnaval. O cartaz está pronto. O resto está em construção.

 

Meu lema, já que não sei me comunicar “tipicamente”, é:
“Provocar para transformar”.

***

E quem vier numa semana de carnaval é porque tem que vir. É para essas criaturas fora da caixa que eu gosto de falar. Queria ter a sensação de poder transmitir aos que transitam em torno do autismo, e aos pais, e aos aspergers e autistas que me acompanham, um pouco do que aprendi. Queria que elas fossem felizes. Aliás, quero.

Assim, reuni mentalmente tudo que imagino ser de importância crucial – note bem, crucial – para que essas pessoas consigam tocar suas vidas, com autismo ou sem. Que percebam, no fundo de si mesmas, que é possível viver uma vida com sentido, ser alguém notável, viver, como diz Bruno Ávila, uma vida “memorável”, ainda que em seu cotidiano envolto pela rotina do autismo, cheio de altos e baixos.

***

Há infinitos recursos para viver bem e até muito bem, mesmo com o autismo. Muitos deles estão aqui, na minha mente, claros como água. Obtidos de um garimpar constante, diário, uma busca involuntária e infinita. Minha rotina também como a sua, cheia de altos e baixos.
A questão é que eu não sei – como faria uma pessoa típica – resumir e dizer em poucas palavras o que é este workshop, só sei que venho com tudo. Dizer tudo o que é esse encontro que estou a esboçar. Fazer com que as pessoas sintam vontade de vir, quebrando o hábito automático de fazer a mesma coisa (geralmente, nada) no feriado de carnaval.

***

CRIAR PÁSSAROS é uma como que continuação do workshop anterior, “Aspergers e autistas sob a ótica da Caverna, de Platão” – também numa sexta feira de um feriado prolongado.

E, no fim, foi uma sensação que não daria para colocar em palavras. Aquele pequeno grupo “cabeça”, ali, querendo saber mais, querendo ir além do autismo, pensando junto. Uma turma, no geral, tão coesa que de tanto interesse pelo assunto deu por trivial tirar fotos. Só uma, que uma participante, muito simpática, me “roubou” uma foto de improviso.

***

Enfim, não sei ainda resumir tudo que terá o workshop COMO CRIAR PÁSSAROS, por isso resolvi dizer um pouco por dia. Fique atento, que logo você vai saber. E até novembro, espero que já tenha decidido estar conosco.

Aqui, em tempo real, eu começo a contar da construção desse workshop para fevereiro.  Ele deve fechar as inscrições até Dezembro/2017, para poder acontecer com qualidade.

***

Vou contar como é o sufoco de preparar tudo sozinha, do conteúdo à logística, e como é para uma profissional asperger conduzir sozinha, sem uma equipe, sem infraestrutura e sem apoio externo, um encontro de 1 dia.

Neste, o desafio é dobrado. Se encontrar o local certo, o que ainda estou à procura, serão 2 dias. Mas, principalmente, aqui também você vai começar a saber o conteúdo – e por que ele é importante para sua vida.

Acompanhe os próximos artigos. Escreva desde já  um e-mail para dizer do seu interesse. Você será informado de todos os detalhes. Diga a CIDADE e o Estado de onde mora. Responda nesse e-mail a pergunta: NO DIA-A-DIA, QUAL É O SEU MAIS SIMPLES DESEJO?

Um abraço

Ana Parreira  CAMPINAS SP  villa.aspie@gmail.com
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magic bird slow stitching 2Vamos continuar falando mais da costura livre, que veio do movimento original slow stitching.
Esta é uma ocupação prazerosa, porém, muito mais que isso, afeta beneficamente todo seu estilo de vida. Pode ser entendida como zen, a costura que acalma, desacelerada, slow (devagar), que atrai concentração e relaxa, uma pedra no lago, pois se reflete em outros comportamentos normalmente apressados e automáticos.
Começa com um pequeno pedaço de pano, onde você vai bordar pontos tracejados (como um alinhavo) no começo em linha reta ou em círculo, ou pequenas cruzes, ou o que quiser. E ninguém pode imaginar o que acontece naturalmente a partir daí. A criatividade brota de tal maneira que, quando perceber, você estará produzindo peças como painéis, roupas customizadas (sempre em estilo slow stitching), até sapatilhas, mapas, aplicação em roupas e mil outras coisas mais.
É uma arte que deixa você com uma espécie de prontidão para tomar decisões.
A costura tradicional tem regras, tem limites, sua criatividade é ditada pela moda, pela tendência do mercado. É uma “costura social”.
A costura livre, por outro lado, é uma costura natural, universal e praticamente sem limite. Sem ser exatamente “anti-mercado”, quem ganha asas, na prática de slow stitching, é a liberdade para o belo que se descobre na imperfeição. É uma arte wabi-sabi, onde a simplicidade, o espaço para imperfeição e a impermanência são os toques principais.
Aqui, sua imaginação é que manda. A costura livre é um processo – sem perceber e sem se forçar, quando se dá conta, você parou de tomar remédios para angústia, medo, ansiedade. Pois tudo naturalmente se encaixa e tudo se acalma.
Slow stitching é uma atividade que questiona a obediência cega a regras e dá a você o poder de criar, de elevar-se, de agir com mais autonomia, simplicidade, aceitando suas imperfeições e indo em frente assim mesmo.
Lembrando que esta atividade é também para homens. Em vários países há homens – civis e até soldados – praticando algum tipo de arte em costura ou tricô. Eles já descobriram que artes manuais desenvolvem a sensibilidade e isso os fortalece. Outros, como o próprio Mark Lipinski, citado no artigo anterior, que faz exposição, vende suas peças e dá palestras pelo mundo, fazem da costura livre uma ocupação permanente e sua fonte de renda.
As pessoas que têm (ou que vão descobrir que têm) prazer em lidar com tecidos, como é também o meu caso, e praticam a costura livre sabem que há tecidos como seda, cetim ou malha que não se dão bem com slow stitching.
Eu utilizo, e recomendo, para a arte da costura livre, usar sobras ou retalhos de tecidos de algodão, linho ou brim. Quanto mais puro o algodão, melhor para trabalhar e mais rústico e simples (muitas vezes chiques, mesmo assim). Não é regra obrigatória – mas na costura livre se usa mais tecidos lisos, de cores secundárias, pastéis, às vezes alguns listrados ou xadrezes.
A costura livre não é quilting, guarda poucas semelhanças. O quilting, arte em mosaicos de tecidos, além de bem mais caro, não tem a liberdade ampla e irrestrita que tem o slow stitching. Você pode fazer patchwork com a costura livre mas esse não é o propósito. O propósito é a libertação, o sentido de vida, a conexão, a criatividade por conta própria.
Há uma mestra dessa arte, a britânica Clair Wellesley-Smith, autora de Slow Stitch, que chama a nossa arte de “arte têxtil mindful e contemplativa”. Repare que o título é “stitch” (o ponto em si) e não “stitching” (a costura) como é o usual.     A capa dura do seu livro tem um toque de tecido meio aveludado, que você sente nas mãos. Algo que você só acredita quando o livro chega. Para dizer que a textura também é importante (eu, por exemplo, uso como primeiro critério a textura para escolher um tecido, por isso prefiro o algodão).
Esse livro é de leitura obrigatória e está dentro das poucas compras que eu recomendo (você pode fazer costura livre a partir de roupas e lençóis usados, retalhos, tecidos trocados em um grupo ou doados por costureiras ou confecções). Minha filha me trouxe quando foi aos Estados Unidos e eu o consulto sempre. Mas você pode adquirir o livro pela Amazon.
Há certas ideias criativas no livro de Claire, e na própria costura livre, que, se forem tomadas como metáforas, poderão deixar educadores, psicólogos, empresários ou os cursos de liderança para empresários de boca aberta.
Slow stitching (a nossa costura livre), portanto, é uma atividade terapêutica ao alcance de todos. Acho que posso chamá-la de psicostura. Uma arte-terapia que um praticante sente na pele se começa a lidar com panos, agulhas e linhas, livre de prazos, pressões, metas, moldes ou modelos riscados. Acima de tudo, é uma aventura.
Falei demais – e tanto ainda ficou por ser dito…
Quer participar dessa aventura, ver para crer – e começar?
Fale com a gente pelo e-mail villa.aspie@gmail.com. Um abraço
Ana Parreira – Campinas SP

 

O que você daria para ter paz interior, curar suas feridas e memórias, diminuir o medo, uma dor, construir sua autoconfiança e, ainda por cima, se sentir uma criatura notável com um trabalho contemplativo e gostoso de fazer? E se você soubesse que pode desacelerar, em um mundo acelerado e cheio de pressões, e encontrar o seu tempo, o seu ritmo, simplesmente usando pedaços de tecido, agulha e linha?
As pessoas que praticam essa arte, automaticamente, se tornam parte de uma irmandade e nunca mais se sentem sozinhas ou diminuídas. Elas ressuscitam. É uma paixão transformadora. E é feita de encomenda tanto para quem é hábil nas artes manuais, para quem já costura como ninguém, como também para pessoas novatas ou desajeitadas.
E ainda por cima, você já imaginou poder criar peças únicas, exclusivas, que só você fez e que não têm réplica idêntica no mundo inteiro?
Essa possibilidade existe. Ela pode ser chamada de Costura Livre.
Na verdade, o que eu chamei de costura livre veio do Slow Stitching Movement, fundado por Mark Lipinski. A tradução desse movimento é “Movimento de Costura Lenta”. Não é preciso máquina, é costura manual.
Dei o nome de costura livre porque o nome de origem, “costura lenta” cai bem, na língua inglesa – mas não diz exatamente o que é, nem explica por completo em português e, assim, seu encantamento iria se perder aqui no Brasil.
Mark Lipinski, por sua vez, criou o Slow Stitching Movement inspirado pelo movimento Slow Food, que é a a prática de comer devagar. Para conhecer a arte de comer, que inspirou a arte da costura lenta (como Mark a chama), você pode começar pelo link http://www.slowfoodbrasil.com/slowfood/o-movimento. Também gosto de seguir esse estilo de comer usando o rashi, aqueles dois pauzinhos japoneses que deixam cada bocado de comida com um gosto delicioso.

Mas aqui não estamos falando de comida. Esse parêntesis (o de comer devagar) foi apenas para você pegar o espírito da coisa. Estamos falando de um tipo (simples, incomum e muito mágico) de costura. Poderíamos até dizer costurinhas, pois não envolve a confecção de roupas, talvez apenas os acessórios. Mas é, ao mesmo tempo, algo mais simples e mais profundo. Embora a gente saiba que todas as costureiras são fadas. O movimento slow stitching original de Mark Lipinski você pode conferir no link http://www.slowstitching.com/.
……………………,
A costura livre transforma. Com ela brota um relaxamento genuíno, o prazer de fazer. Ela é um dos caminhos seguros para a criatividade pessoal infinita.
Sou psicóloga, sabia? E não costureira de profissão. Sempre fui um tanto desajeitada para artes manuais. O que mais fiz foi remendar almas feridas, costurar corações partidos. Trato de outros temas também. Mas tenho um xodó especial por tudo que dá um resultado visível. Conheço muitas técnicas de relaxamento, que aplico com as pessoas e comigo mesma, mas nenhuma com resultados tão claros e tão concretos quanto o da costura livre.
Este caminho da costura livre (que também pode ser para homens) me parece o final feliz de vários anos de busca.
Mais para frente, eu quero poder mostrar algumas peças que já fiz ou que estão em andamento. Já estamos formando um grupo presencial. Todos, inclusive minhas amigas costureiras, mas todos de qualquer profissão são bem-vindos. Uma observação: o blog Villa Aspie (feito para pessoas aspergers, onde o movimento da costura livre (slow stitching – costura lenta) está provisoriamente alojado porque sou péssima para abrir páginas) é uma outra história. E aspergers também são bem-vindos.
Agora, uma coisa é certa:
Se você deseja
– aprender uma técnica simples (mas não simplória) e descomplicada
– curar ou recalibrar as suas emoções
– descobrir e dar lugar ao seu eu criativo, gastando nada, ou quase nada
– encontrar o ritmo desacelerado que tanto queria, o seu ritmo, sem brigar com o fast world, o mundo corrido que aí está
– encontrar um sentido para a sua vida…
Então, como diz Mark Lipinski, “este movimento é pra você”.
Acompanhe os próximos artigos, que vem muito mais por aí.
Fique bem.  Se quer montar grupos, quer palestra ou aulas, fale comigo.
Ana Parreira
Campinas SP
villa.aspie@gmail.comLOW STITCHING 5

1. Se você foi “diagnosticado” – seria melhor “identificado” – como asperger, deve saber que isso acontece porque, por tradição, aspergers e autistas são vistos apenas pelo modelo médico. Mas você é muito mais que isso, é um ser antropológico e está no mundo como um Ser Total. O modelo médico encontra em você apenas “inabilidades”. Não caia nesta como único ponto para formar a sua autoimagem. As “inabilidades” não são permanentes. Ou podem ser precisamente o oposto, habilidades. Por exemplo, você não é “apegado” a detalhes” e, sim, tem a habilidade natural de observar detalhes. Você pode aprender, ter uma meta e mudar em si mesmo tudo aquilo que quiser.
2. Desde que foi revelado que aspergers e autistas existem, a verdade é que a simples presença deles tem gerado milhares de trabalhos para pessoas não autistas. Sem perceber, você é um gerador de empregos. E só por isso, em princípio – eu disse “em princípio” -, você merece Respeito e não deve nada a ninguém. Entre em qualquer lugar com a cabeça erguida. Por isso mesmo, vista-se e apresente-se o melhor possível e com a melhor roupa, até mesmo em casa. Ninguém respeita uma pessoa mal arrumada, mesmo que ela mereça respeito.
3. Pela mesma razão do item 2, se você sabe bem um ofício, não trabalhe de graça, nem por um valor inferior ao de uma pessoa típica que fizesse o mesmo trabalho. Nunca acredite na frase, que ouvirá muitas vezes, até de bem intencionados, “Não vamos (lhe) pagar, mas isso vai `abrir portas´.” Diga você mesmo (e ouça a música de Raul Seixas) “Abre-te, Sésamo.” A menos que seu ofício seja o de um chaveiro, seu ofício não é de um chaveiro.
4. Enquanto a mentalidade no nosso país não mudar em termos de valores humanos, não saia por aí expondo sua condição de asperger. O mundo não recebe NINGUÉM de braços abertos. Se fosse assim, pessoas em outras “condições especiais” estariam pulando de felicidade – e há gente em condições bem piores que as de um asperger. Sua privacidade só diz respeito a você e à família. Preserve-se – e a metade dos desafios será naturalmente eliminada.
5. Evite ir a eventos de autismo para dar depoimentos, principalmente para expor sua intimidade. Autistas são muito mais objetos de curiosidade do que de empatia. Além disso, você deve ser identificado à mesma altura dos demais que falam, e não para fazer figuração. Mas, se for, imponha uma condição e teste as reações: que uma pessoa típica também dê um depoimento de suas próprias limitações. Será que vai conseguir encontrar um corajoso? E, caso não seja profissional na área, não fale de autismo como um expert, mesmo que você seja UM autista. O seu laudo não é um diploma, é apenas um laudo.
6. Confie em seus pais e pergunte a eles, em primeiro lugar (e não no Facebook), quando tiver um medo ou uma dúvida. Ajude no serviço da casa e comece pelo seu quarto, o mais limpo e bonito possível. Ofereça-se para fazer compras, ouse pedir desconto e confira o troco. Só porque é asperger não quer dizer que você está no mundo a passeio. Se não entendeu a razão de participar das tarefas diárias, saiba que este é o primeiro treinamento para a sua INDEPENDÊNCIA.
7. Seus interesses não são “hiperfocos”, são SEUS interesses – e podem mudar com o tempo. Não se refira a eles negativamente. Respeite cada um deles e estude, pesquise, desenvolva-os, pois um desses interesses pode ser sua profissão – e sua redenção – agora ou no futuro.
8. Lembre-se de que o autismo é muito vasto e complexo e que ninguém sabe TUDO de autismo (seria melhor “de autistas”). Não se envolva em discussões com quem dá opiniões pessoais e não apresenta referências ou argumentos. Se quiser saber sobre suas condições, pesquise você mesmo, estude e se esforce. A cada nova “descoberta”, queira sempre checar a fonte. Não é exatamente quem assina que sabe, mesmo sendo uma celebridade ou um conhecido de facebook – é o conteúdo.
9. Em vez de se deprimir, aprenda a RIR de tudo, até de si mesmo. Ser autista não é uma tragédia. O HUMOR diminui as tensões e lhe dá mais chances de tomar decisões inteligentes. Sempre lembrar que “rir é o melhor remédio”.
10. E, por fim, reze três vezes ao dia. Não estou falando de religião. Reze da sua maneira, rezar é meditar. Pela manhã, reze para encontrar um belo propósito para o seu dia. No início da tarde, reze para terminar de fazer aquilo que tiver de ser feito. E, à noite, reze para ter um bom e merecido descanso, e para acordar vivo, mesmo que ninguém ao redor se importe se você acorda vivo ou não. É você que importa. E o mundo precisa, sim, de você, atualmente, mais do que nunca.
Pronto, falei. Qualquer dia tem mais.
– Ana Parreira é autora de Gente Asperger. villa.aspie@gmail.com.

 

FALA, ANA!

QUAL É, EXATAMENTE, O MEU TRABALHO:

NO CASO DE ASPERGERS E AUTISTAS

Esclarecimento necessário (e dúvida quanto a uma definição):

Confesso que não sou boa em interpretação de textos. Se isso não fica tão visível é porque eu tenho um tanto vasto repertório de conhecimentos para uma mulher comum criada no interior, muito dado pelo fato de ser tradutora e, assim, ter que ler obras diversas. E também porque sou atraída pelos detalhes (não, como querem os “definidores de aspergers e autistas, “apegada” a detalhes!). E, com isso, antes de interpretar um texto, faço a lição de casa: vasculho tudo que tenha a ver com o livro que tenho nas mãos.

Assim, para vencer essa dificuldade de interpretar um texto, ao ler um livro denso, mesmo que pareça enganosamente curto e simples – como um de Tolstoi, por exemplo, A Morte de Ivan Ilitch -, eu preciso antes ler a sinopse, artigos sobre a obra, investigar o autor, sua época, suas ideias, suas tendências, entender o recado, comparar com as costumeiras ou possíveis críticas e ainda observar os vieses dos críticos (eu jamais seria uma boa crítica de livros e filmes).

Só então – e se eu gostar do que encontrei em tudo isso – eu leio o livro em si. Sinto ainda a necessidade de ler em mais de um idioma, para chegar ao mais puro daquilo que o autor desejou transmitir (Tolstoi, por exemplo, escreveu em russo). Se possível, ainda parto para aprender o idioma original do autor, e é por isso (por Tolstoi e outros), também, que agora estou empenhada em aprender russo. [É certo que penso nas guerras. E se um dia a Rússia resolver invadir o Brasil, já sucateado para esse propósito, talvez eu possa salvar minha vida e de meus filhos, falando o idioma do invasor, como muitos fizeram na II Guerra. Isso não é uma “viagem”. Há russos e russos, por exemplo, há Tolstoi e Putin. Como dizem no INSS (se não acredita), “é só aguardar”.

————-

Mas tudo isso é para dizer que, se não sou boa em interpretação de textos e tenho que dar essa volta toda, imagine você que a minha dificuldade é mil vezes maior quando tenho que interpretar a mim mesma. E preciso que as pessoas entendam qual é o trabalho que eu faço e por que ele é importante.

O que interessa, aqui, é definir:

Qual é o meu trabalho, no autismo?

Pensam que é o de dar toscos depoimentos enquanto asperger?

Não. Já incorri neste erro, no início. Isso levou as pessoas a se esquecerem de que sou uma profissional. Psicóloga, no caso, para quem não sabe. Mesmo assim, muitos não compreendem qual é a minha proposta e o que eu ofereço. Há os que admiram o meu trabalho sem saber exatamente qual seja ele, há os que odeiam sem saber e me excluem de eventos ditos científicos. Hoje, eu entendo isto. Não tenho a pretensão de exigir que os típicos funcionem direito, se nós também, para eles, não funcionamos direito.

Sou eu quem deve dizer qual é o meu trabalho, acho que devo isso às pessoas. Ou melhor, deveria ser eu mesma. Mas essa tarefa é, como eu já disse acima, uma dificuldade. Está muito claro para mim o que eu faço no mundo do autismo, porém, é difícil colocar em palavras que todos entendam.

Só uma coisa já deve ter ficado clara: é um trabalho solo, sem grupos, sem apoio, sem equipe, sem viagens de capacitação, sem recursos que não os da curiosidade, do esforço e das facilidades da internet.

Mesmo assim, eu consigo chegar a muito bons resultados e até a antecipar muitos passos. Coisa que mais me preocupa é não chover no molhado. Apresentar dados novos, para avançar passo a passo no conhecimento de autistas e aspergers aqui no Brasil, e não me dá prazer nenhum dizer que estamos com uns sessenta anos de atraso. Mas não podemos mais ver tantos repetindo sempre as mesmas coisas – quando não as mesmas desinformações. O autista tem pressa e a vida passa rápido. Ele precisa se entrosar no mundo enquanto ser vivo. Não adianta chorar e fazer homenagens depois. E nós temos que fazer um esforço conjunto para isso.

——-

Bom, enfim, qual é o meu trabalho, então? Como demonstrar a importância e a relevância do meu trabalho para que ele seja colocado no seu devido lugar e algumas mudanças aconteçam?

Pensa que escrever sobre isso está muito fácil? Não está. Vou tentar resumir, até onde eu mesma consiga explicar. Depois disso, a esperança é que alguém mais (imagino que um típico) possa sintetizar meu trabalho com mais precisão.

– Em primeiro lugar, não me proponho a opinar sobre nenhum método, processo ou técnica, dentre os que são aplicados, a não ser por algumas aberrações, quando universalmente muito evidentes, pois não aprecio concluir sem ter estudado a fundo e ter argumentos – acho que isso é ciência… – e, por alguma razão, ainda não tive interesse em fazer pesquisas exaustivas sobre cada um. Se tenho algumas preferências que foram boas para mim e para o meu filho, expresso-as dentro do devido contexto, no consultório ou em cursos e palestras, o que não quer dizer conclusões fechadas ou exclusão definitiva de método algum. Nem os que estão mais em voga, nem os que não estão.

– Em segundo lugar, considerando, a priori, todos os recursos como potencialmente viáveis, isso não quer dizer que eu não veja uma ordem de prioridade para que esses recursos sejam aplicados. Por exemplo, entendo que socialização não é o primeiro passo – e que “consertar o autista” não necessariamente o torna mais feliz ou lhe garante maior qualidade de vida. Ao mesmo tempo que aceito que, sim, há reparos a fazer. O que significa que há reparos a fazer nos próprios típicos também. Zero a zero.

– Em terceiro lugar, o que busco é mostrar a importância de, antes de um profissional, professor, pai, mãe, ou mesmo asperger adulto partir para a ação, é preciso que ele(a) pare para refletir o que deseja de verdade. É preciso planejar, mais do que executar de imediato qualquer atitude. É preciso examinar a sua ética pessoal. Se não sabe o que isso quer dizer, é preciso falar, então, sobre ética: O que estou prestes a fazer, ou a dizer ou ensinar, ou aplicar, vai beneficiar a quem, exatamente? Ao autista?

Como na história das três peneiras: O que estou prestes a fazer tem verdade? Tem bondade? E… tem necessidade?

Pensando mais longe: Tem lógica? Tem relevância? Tem algo de novo? Tem fundamentos? Tem a devida competência? Traz benefícios (ou aumenta a ilusão) para aspergers, autistas e seus pais?

Eu falo também sobre diagnósticos. E sobre as implicações atuais e futuras, para um autista, da forma de como é redigido o laudo diagnóstico. Em consultório, faço avaliação diagnóstica para aspergers adultos, ou no mínimo a partir de uns 14 anos, depois a manutenção com orientações, e muito importante é o trabalho de orientação a pais de aspergers e autistas pequenos(as).

Hoje em dia, para mim, é cada vez mais importante dar capacitação e assistência a pais de crianças autistas e aspergers. Os pais, mais do que ninguém, precisam de um norte. Isso pode determinar o futuro dessas crianças.

———————

Enfim, meu trabalho, acredito, é o de provocar para transformar. Fazer PENSAR, para ter mais clareza, depois, em questões pontuais.

Procuro mostrar que não se estuda o autismo utilizando apenas o autismo, mas muitas outras áreas do conhecimento, pois o autista está NO MUNDO, e não, como querem alguns, em um mundo isolado.

Nas empresas, tento abrir caminhos para a importância de aspergers e autistas inseridos no mercado, com um diferencial, que é uma miríade de detalhes esclarecedores. Mostrando também que são pessoas como outras quaisquer, apenas com funcionamento diferente, em alguns pontos, para melhor.

Diante desta tentativa de descrever o meu trabalho, que antecede (ou deveria anteceder) a preocupação com ações imediatas, preciso que alguém (como disse, um típico seria melhor, talvez) me diga: afinal, qual é o meu trabalho, ainda que diferente dos demais e parecendo fora da curva?

Meu trabalho é de abrir a estrada? Isso é uma PERGUNTA, não é uma sugestão.

Este artigo foi escrito pensando, de início, em mandar para o meu amigo e cientista Alysson Muotri. Sempre gosto de ter uma opinião dele. E acabou se transformando numa carta aberta todos. Mas ainda espero uma resposta do Alysson. É que estamos – Carise Lobo e eu – fazendo os preparativos para, talvez, abrir um canal no Youtube, que já tem nome: FALA, ANA!. Isso é o que vivem dizendo. Para eu falar. Daí o nome ficou.

Olhe que “Fala, Ana!” tem vírgula.

Obrigada pela leitura deste e por uma palavrinha. Será que expliquei ou confundi?

Ana Parreira – Campinas SP

villa.aspie@gmail.com

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Hoje é o dia de conscientização da síndrome de Asperger, devido ao médico que publicou suas descobertas em 1944. Um trecho do livro GENTE ASPERGER diz:

“1906 – Nascimento do médico pediatra Hans Asperger (1906–1980) em 18 de fevereiro, em Viena, Áustria, data em que é lembrada a síndrome de Asperger. […]

1932  – Neste ano, Hans Asperger já se ocupava dos meninos com traços de autismo. Desde 1930, ele trabalhava em uma clínica infantil e tinha como seu mentor Irwin Lazar, médico preocupado com crianças traumatizadas pela I Guerra Mundial. Asperger sofreu grande influência de seu mentor e de Franz Hamburger. Eram tempos muito difíceis, em que as bases do nazismo estavam sendo plantadas desde antes de 1930 e o regime nazista se iniciou na Alemanha, oficialmente, em 1933. Sabe-se, com farta literatura a respeito, que Hans Asperger não era nazista, apenas o era o seu superior, Franz Hamburger, o qual, por duas vezes, impediu que Hans fosse levado pela Gestapo em razão de seu trabalho. [segue…]”

  Trechos do livro GENTE ASPERGER (no Histórico), Ana P.

Conscientização significa, entre outras coisas, desfazer alguns enganos:

Primeiro, as pessoas aspergers não “desapareceram”! Continuam referidas na letra F-84.5 do CID-10, manual da OMS – Organização MUNDIAL da Saúde, adotado no Brasil. Nada temos a ver com o DSM, publicado por uma associação de psiquiatras americanos (veja, não e de todos os profissionais, é de psiquiatras; não é mundial, é americana). Além disso, esses manuais são bastante resumidos e não dizem tudo o que uma pessoa apresenta – não lista os inúmeros traços possíveis). O médico, psicólogo ou outro profissional precisa conhecer muito mais que isso e saber identificar tantas características que os manuais não dizem. Um manual é apenas um ponto de referência para alguns critérios ditos comuns (e nem sempre).

Segundo, as pessoas aspergers e outras com diferentes graus no espectro do autismo podem ser identificadas não só por suas limitações mas também por suas qualidades potenciais – semelhantes e diferentes em cada um. Avaliações apenas dos “déficits” e avaliações em uma única consulta são incompletas e podem levar a erros de diagnóstico.

Terceiro, “diagnóstico não é sentença”, pois, por si só, não determina o destino de um asperger ou autista, como “não é um diploma” e “não é um status” (no livro GENTE ASPERGER, onde há a explicação ampliada). O objetivo do diagnóstico é mostrar um caminho para possíveis tratamentos e orientações. Imagine cinco  tipos de pessoas dentro do mesmo espectro, não do autismo (há inúmeros espectros!) mas, por exemplo, na questão motora: uma não mexe o corpo inteiro; outra não mexe os membros inferiores; outra só se locomove com o auxílio de muletas, outras com andador; outras usam uma bengala, ou até não usam nada, mas têm problemas sérios de deambulação e não podem caminhar muito nem subir escadas. Cada uma tem uma necessidade e, para cada uma, o tratamento será relativamente distinto. É para isso que se deve ter um diagnóstico preciso e rico em detalhes: para direcionar a conduta a seguir, conforme o caso.

Quarto, embora a lista não termine aqui, fazer comparações entre graus de autismo, principalmente ressentidas ou maliciosas, é um atraso de vida e não beneficia ninguém. Todos, autistas e aspergers, crianças e adultos, são uma família só dentro do espectro! Aspergers se sentem, sim, em conexão com os demais e identificam-se com eles, mesmo que não se manifestem.

Por fim, se você pertence à “comunidade do autismo”, faça contato e dê apoio aos aspergers, inclusive adultos. Não os exclua de sua lista de interesses e de convivência. Eles podem ensinar muito sobre seus pares (aspergers e autistas, crianças e adolescentes), assim como é bom para eles trocar ideias e aprender com você.
A tão falada inclusão começa “em casa”. O espectro do autismo também é a nossa casa. Hoje, 18 de fevereiro, ajude-nos a estar no mundo.  Juntos, chegaremos mais longe.

Ana Parreira
Autora de “Tango Para os Lobos – Cantos proibidos de uma Aspie” – e de
“Gente Asperger” – ambos somente encontrados por e-mail.
E-mail:  villa.aspie@gmail.com

Escrito a pedido e com permissão especial de publicação para Carol Francisca  no Facebook.

Uma amiga, lendo um artigo em inglês sobre abusos, perguntou-me o que é GASLIGHTING. Em princípio, eu respondi que ele está explicado no meu livro GENTE ASPERGER. Depois, pensei em publicar aqui este trecho do livro, para ajudar a esclarecer um tipo de abuso que ocorre muito com aspergers, e também com qualquer pessoa mais tímida, mais delicada ou vulnerável, e causa grandes prejuízos emocionais.
Conheço bem este tipo de manobra porque já fui muitas vezes vítima dela, porém é tão comum que as pessoas nem percebem. Quando você sabe o que é, então, pode ficar mais alerta. Cuide de si. A vida é uma luta!, como dizia a minha assistente doméstica Clarice. E saber de abusos nunca é demais.
Leia, pense, imagine e aprenda para sempre. O trecho de GENTE ASPERGER, portanto, segue abaixo:

Indução à desorientação (gaslighting)
Gaslighting é uma forma de abuso emocional não muito conhecida entre nós enquanto teoria, mas muito praticada. Como não há correspondente – creio – em português, resolvi chamar a essa prática de abuso, muito comum, por sinal, de indução à desorientação.
No original, gaslighting traz a ideia de “aumentar ou diminuir a luz de um lampião”.
É a habilidade intencional de alterar a percepção de uma pessoa usando o chiaro-oscuro, luz e sombra, como um cenografista ilumina ou escurece um cenário, criando uma ilusão. O abusador deseja realçar ou ocultar pontos que levam a vítima a ficar desorientada, ficar em dúvida sobre o próprio raciocínio, sua percepção ou sua memória. Por meio de repetidas instruções falsas, e de falsas evidências plantadas na cena, a vítima é levada a crer que se engana, pois ela observa uma coisa e o abusador diz que é outra. Em alguns casos, o abusador monta cenas para fazer a outra pessoa pensar que tem alucinações. Em outros casos, pode evoluir também para a violência física – em geral, violência doméstica – pois são pessoas que convivem de perto.
O alvo (alvo, no início), deve ser convencido de que é louco, incorreto, inadequado, desastrado, incapaz. A intenção é fazer com que a vítima (agora já não mais um alvo) duvide de si mesma e de sua sanidade.
A expressão “gaslighting” vem de uma peça de teatro que deu origem ao filme Gaslight, em 1944, em que o marido tentava convencer a esposa de que ela não está em seu juízo perfeito. Ocorre, por exemplo, quando um manipulador deseja fazer com que alguém de seu convívio seja convencido a aceitar internação, para depois tornar a pessoa declarada incapaz e se apossar de seus bens. Mas este é apenas um exemplo. Outro pode ser o de um patrão que repreende de tal modo um empregado, que este (ou esta) se mantenha sempre tentando corrigir o seu “erro” e, assim, contentá-lo mais e mais. Mulheres – principalmente mulheres aspies – são duas vezes mais vítimas do que homens.
Entretanto, qualquer pessoa abusiva pode tentar induzir alguém a ficar desorientado. Ao invés de envergonhar, isso diverte o abusador – e, como um abuso nunca satisfaz, ele tende a crescer e a se tornar cada vez mais frequente. Desorientando a vítima, o abusador visa algum tipo de lucro: ou interná-la para ficar com os seus bens, ou fazer com que ela se esforce cada mais em servi-lo ou em fazer suas vontades, ou até mesmo, por exemplo.
Aspergers precisam saber que isso é comum (mas não é normal, nem certo) e aprender a reconhecer essa prática para evitar cair em uma relação abusiva, inclusive com amigos. Os raros casos que podem ocorrer sem intenção, o que ainda não deixa de ser um tipo de instrução enganosa, muitas pessoas lhes dizem: Você está vendo coisas. Deixe de paranoias, deixe de exageros.
A própria forma de lançar um spot negativo sobre o asperger, por exemplo, a partir da Teoria da Mente e de outras teorias, vista sob certa ótica, pode ser interpretada como gaslighting, já que dá ao asperger uma imagem muitas vezes falsa de si mesmo.”

Se você aprendeu mais uma forma de entender essa manobra no convívio social, tem muito mais em GENTE ASPERGER.
Nosso livro não está em livrarias e o estoque, limitado, já está pequeno. GENTE ASPERGER é um livro investigativo, fruto de três anos e meio de pesquisa que fiz e de minhas próprias experiências, bem como de casos de pessoas aspergers a quem prestei ajuda ao longo do meu caminho como profissional de psicologia (que por acaso é asperger).
Para ler mais, encomende o livro por e-mail. É simples. Envie um e-mail para VILLA.ASPIE@GMAIL.COM e nós lhe enviamos as instruções de como adquirir.
Um grande abraço da
Ana Parreira
Campinas SP 23 ago 2016

T3

T3

world water

Há muito tempo venho ensaiando acalmar minha consciência e honrar o compromisso de escrever mais assiduamente neste blog, que, afinal, foi aberto com essa intenção. E alguns leitores esperam. Se acabo adiando é pela eterna e “onipremente” situação de sobrevivência. Hoje, porém, além das tarefas de rotina e de uns livros para postar no Correio, nada tenho a fazer agora pela manhã, o nosso Day After, senão esperar que a chuva acalme.

Porque amanheceu e continua chovendo. E a ameaça de a chuva enfiar-se pela casa como um intruso que entra pela chaminé nas construções onde há chaminés, no caso, entrar pelos pontos de luz dos quartos, sala e cozinha, essa ameaça ainda paira no ar. Talvez ocorra à noitinha, sua hora habitual. Feito a  espada de Dâmocles. No meu epitáfio, poderia estar escrito:

“Aquela que viveu a desafiar a espada de Dâmocles.” Ou,

“Aquela para quem a vida foi tudo, menos monótona.”

Chove, pois, desde ontem, embora não seja uma chuva torrencial e ensandecida como a da noite passada.

E aqui faço um parêntesis, originado tempos atrás pela ideia de Primo Levi, em “É Isto um Homem?”, o qual inicia o prefácio dizendo “Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944…”. Digo:

Por minha sorte, tive a chance de nascer ávida por estudar e conhecer as coisas e, ao mesmo tempo, perder tudo que tinha e me tornar [completamente] vulnerável. Pois estas duas condições, a inclinação para o conhecimento e a pobreza, são imprescindíveis para que alguém possa sentir a plenitude da vida. Bem como para alguém se encontrar e nunca se perder de si mesmo – risco que correm os chamados bem sucedidos. Pelo menos desse mal fui livrada, amém. Não há perdas sem algum ganho.

E essa consciência foi se configurando depois do diagnóstico (sic), que eu sempre chamo de identificação. “A threshold situation“, situação divisora de águas.

E estamos falando de águas. Meu mais novo interesse especial, jamais “restrito”, sempre focado, é o estudo das águas. Hoje, depois do (sic) diagnóstico, aos poucos, fui aprendendo a separar as coisas. Em dias secos, conheço da água tudo que posso, embora o foco principal seja a água que temos de beber. Em tempos de dilúvio, porém, como a noite de ontem, não é hora de pensar: é hora de espalhar os baldes pela casa, secar os aparelhos, acalmar o filho, em pânico no início, pelo quarto alagado e com medo de perder vídeo game, micro e tudo. Por sorte (sempre há uma sorte), não choveu sobre a cama. Por fim, deixar que ele mesmo dê conta do quarto sozinho e, se calhar, ao mesmo tempo dê conta dos dois labradores transitando pela casa, para que ele se fortaleça enfrentando sozinho situações de emergência. Fingindo não estar nem aí, falta de empatia, para lhe dar espaço, fui checar os outros cômodos. Se todas as mães, mesmo mães aspergers, soubessem como isso funciona, experimentariam.

Ao mesmo tempo, tento não pensar. Deixar para  acudir no dia seguinte o meu próprio pânico, que o filho não vê. Por isso foi que deixei, na postagem no facebook sobre a chuva, no final: “We shall overcome, we shall overcome…” [enquanto lutava com as lágrimas, eu cantava por dentro].

A seguir, como diz Fernando Pessoa, em A Tabacaria:

“Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”

Acredito que estudar a água seja um ato de rebelião: você não pode com a água mas pode decidir o que fazer quando a água é boa ou ruim, quando ela vem, ou quando está ausente. O fato de inundar a nossa casa foi acidental, como alguém que é pego por uma bala perdida. Diferente de todas as outras, no entanto, ontem mais forte e até parecendo irada, a chuva parecia dizer alguma coisa. Soava como que com uma intenção apocalíptica, redentora, como um bombardeio d´água que, para lavar para sempre alguns, acaba por afogar também inocentes.

A chuva forte se me afigurava também, no seu clímax, como um tirano totalitário. Se bem que maior, pois mesmo os tiranos não podem com as tempestades. Conforme o dia, a chuva tem uma ou várias mensagens. Especialmente ontem à noite, depois de já terem se apresentado as sete pragas e quando a notícia, o vislumbre, de juízo final sacudia o país, ela veio.

As águas da chuva pareciam dizer: Mors tua, vita mea (latim, para os distraídos). Sua morte é a minha vida. Frase bem fresca em minha cabeça pelo fato de estar a decifrar – e decifrar, para os curiosos e livres – é degustar – Racismo de Estado, de Celia Bernardes. Mors tua, vita mea parece ser o título original de sua tese, que deu vez ao livro.

Mors tua, vita mea: Para que eu viva, você precisa desocupar lugar. Fiasco para os tiranos. As águas que caem do céu vociferam tal princípio com muito mais autoridade. Para começar, chover é verbo intransitivo. Não há sujeito, nem nada. A chuva cai sem se importar sobre o quê, ou sobre quem.

O que fazer? Nem por isso ceder à água, enquanto, sem perceber, já temos cedido em demasia aos tiranos. O que fazer é: resistir a ambos. Não aceitar toda a água que vem, só porque aí está.

Hoje, pela manhã, quando ainda chovia (agora o sol finalmente se impôs), tomei uma pequena tigela azul (para confundir e atrair as águas do céu) e a coloquei junto ao portão. Minha revenge é estudar tudo aquilo que tenta nos abater. É não deixar que quebrem o meu espírito.

Pois bem, eu já sabia que o pH da água da chuva é ácido. Não é uma água boa para se beber como alguns acreditam. Nem tudo que vem de cima é puro e bom, mesmo que tenhamos o céu, simbolicamente, como algo unicamente puro e bom. Eu sabia, porém, nunca havia antes conferido in loco o pH da água. Tive o cuidado de colocar a tigela longe dos telhados, dos fios ou mesmo do muro e do portão, onde a água da chuva poderia cair e ricochetear, contaminada, para dentro da tigela. Colhi água direto do céu. Fui à cozinha e medi o seu pH.

Deu uma água de cor esverdeada, não chegando a azul. Em uma escala de zero a sete (ácida), sete (neutra) – e acima de sete (alcalina), a água da chuva deu, quando muito, um, pH de 6,2.

Diferente do inseto, que só enxerga para os lados e não olha para cima ou para baixo, e que morre afogado sem saber de onde veio a água que se abateu sobre ele, é preciso estudar o que nos ocorre. Pelo menos, na maioria das vezes, apesar de algum infortúnio, podemos ter dois prazeres. Um deles é sobreviver. Outro é transcender a mera sobrevivência e transformar em objeto de análise aquilo que tenta nos subjugar.

É assim que podemos dizer que estamos vivos.

 

Ana Parreira – Campinas, SP –  11 de março de 2016

Autora de

Tango Para os Lobos – Cantos proibidos de uma Aspie, e

Gente Asperger

Informações disponíveis de como adquirir – e LER – por e-mail: villa.aspie@gmail.com

São sete horas da manhã e começo o dia, felizmente, pensando na conversa que tive com meu amigo Stephen Shore, ontem à noite. A esta altura, com o sol clareando, e na pressa, tomei um café ainda aquecido da tarde anterior, com um pão na chapa e manteiga Leco, sem sal (coloco sal light, com 60% menos teor de sódio), que fica fora da geladeira apenas o tempo suficiente, pois se liquidifica em cinco minutos sob o calor intenso que tem feito nesta terra de príncipes e princesas. “São todos príncipes se os ouço e me falam”, me lembra Fernando Pessoa. E mais ainda quando não falam, eu diria. Mas que ninguém se sinta endereçado. Essa tendência é menos original, e muito mais comum, do que cada um, com seus botões, imagina. É um vírus disseminado e sem controle, adotado como providencialmente correto.
Também, antes das sete, já havia limpado a mesa do computador, dando batidinhas no teclado, de cabeça para baixo (o teclado, é claro), para retirar as cinzas de cigarro de ontem, quando era muito tarde e fui dormir com a cabeça cheia de borboletas: finalmente, havia confirmado uma suspeita que trazia comigo há anos sobre o que de fato teria ocorrido entre Kanner e Hans Asperger. Também graças às trocas de idéias, por telefone, com minha amiga Inês Dias e sua generosa e silenciosa experiência no universo do autismo.
Stephen é um cara delicado, que não deixa o Facebook quando abro uma janela para falar-lhe, o que por aqui é costume. A bem da verdade, também não padecem desse hábito outros amigos como Adam, Benni, Debra, Gordon, Leo, Michael, Wendy, ou Yvonne – e, infelizmente, estou me esquecendo de alguns. Coloco-os aqui em ordem alfabética, uma das minhas “obsessões” favoritas, e dane-se o gambá com a nossa lista de “impairments”.
O denominador comum: todos estes são Aspergers ou autistas, cada um em um país que não este. Todos são autores de (ótimos) livros e alguns são PhD. Não posso adquirir todos os seus livros. Pergunto a Stephen se ele pode me mandar os livros dele, meio constrangida, pois é um autor e tanto e essas coisas não se pedem. Um de seus livros é justamente Autism For Dummies, em parceria com Linda Rastelli e prefácio de Temple Grandin. Stephen, para minha alegria, promete enviá-los. Combinamos que se o seu editor permitir, serei sua tradutora para o português. Foi-me apresentado por amigos de Fortaleza, que o conhecem pessoalmente, pois Stephen adora vir ao Brasil.
Assim, eu que às vezes não tenho como viajar nem pra Caconde, de algum jeito viajo pra Pasárgada e, com isso, quando assusto, consegui reunir a minha “comunidade autista internacional” e, aos poucos, todos os dias, vou formando uma ideia de como sobreviver no mundo enquanto Asperger, bebendo nas melhores fontes. Sendo que um autor puxa outro.
Eu tinha jurado pra mim mesma que não escreveria um livro “sobre” Aspergers. A produção de livros excelentes, muitos aqui desconhecidos, sobre Asperger e autismo ultrapassou, imagine, a linha do infinito. Mas catarse é catarse. Acabei parando tudo porque algo estava involuntariamente em gestação. Estou escrevendo um livro que é mais ou menos um docudrama. Acho que, no fundo, estou mesmo é procurando responder às minhas próprias perguntas, ao meu próprio espanto, do que deixar respostas e receitas. Então, o livro terá um pouco de tudo.
Para o antecipado olhar crítico de uns, terá muitas histórias que até hoje foram mal contadas, ou nem foram contadas – o que lhes dará um self-service de coisas a contestar. Para desespero de outros, principalmente alguns doutores, terá pitadas de poesia. O que lhes dará momentos de agonia e êxtase, enquanto dizem “Bah!”. Para o leitor curioso, para mães de Aspergers e autistas, terá o meu respeito e, quem sabe, dicas que lhes sejam úteis. Mas, em tudo, meu livro se propõe a ser apenas um ponto de partida. Nem sei se vou dar conta do recado. Sei que Stephen, por exemplo, já o está esperando pra ler. Isso é uma responsabilidade, me assusta.
Mas vou ter que saltar do trampolim, com medo e tudo. O livro fica pronto, talvez, em uns três meses. Desde o ano passado estou escrevendo e há mais de ano colhendo dados e fatos reais, inclusive do nosso cotidiano.
Quem tiver intenção de adquirir o livro para ler, vou fazer uma pré-venda. Nem sei como fazer uma pré-venda. Por isso peço que se você estiver interessado, me mande um e-mail sem falta. Vou deixar seu nome numa pasta e aviso quando estiver pronto. Já tem nome, capa, tudo, tem até Bettlheim, esse execrado, pois eu gosto de puxar o fio da meada de coisas ditas de boca em boca. Quis saber quem, afinal, saiu com essa história de mãe geladeira e descobri que papagaio come milho… Por falar nisso, o livro tem episódios recentes também, alguns de como e por que tipo de gente (principalmente por psicopatas) os Aspergers são perseguidos – e como se defendem. Prato cheio. E pitadas do Oriente. E o que, pergunta um, tem o Oriente a ver com o autismo? Saberá.
Agora são nove e meia da manhã, quando termino este post.
Enfim, quem vai querer? Pode levantar o mouse aqui, mas se for de verdade, mande um e-mail para villa.aspie@gmail.com.
Um abraço
A autora

Como são feitas as novelas?
Há algum tempo não tenho escrito no blog. E nem posso declinar aqui os motivos. Entendi que tudo o que eu tenha a dizer sobre Asperger, sobre autismo e todos os episódios e situações vividos nesse universo deva ser contado de uma vez no livro que estou escrevendo. Espero terminá-lo ainda este ano, se conseguir, porque algumas memórias doem. Outras vezes porque eu demoro no ofício de escrever: penso muito, releio, pesquiso, converso com pessoas. Assim que estou cozinhando esse livro em fogão de lenha: lentamente.
Mas um fato me fez parar hoje e escrever este artigo. Foi a questão da novela Amor à Vida (sic), que veio com a promessa de mostrar a personagem principal como uma pessoa no espectro do autismo.

A novela Amor à Vida
Não assisto à novela, mas fui conferir na Internet alguns capítulos onde Linda aparece, de tantos comentários recebidos ou lidos. Não vejo novelas de maneira geral, já que há mais de dez anos decidi não ver – e nem tenho mais – televisão. Desde então, e como sou cinéfila, assisto a um filme por dia.
Mas a expectativa gerada pela novela, antes de sua estréia, e a minha experiência nos cursos de roteiro dados por pessoal da Globo, que me mostraram como são escritas as novelas, me fizeram buscar contato com a produção. Era uma tentativa desesperada de reverter uma situação nada difícil de prever, ou seja: a novela não iria mostrar uma pessoa autista de verdade. Nem remotamente, em se tratando de “ficção”. A novela não viria para defender a causa do autismo. As demais personagens ao redor da personagem principal não iriam refletir o que é uma família envolvida com um caso de autismo. Pelo menos, eu tentei. Sei que outros também tentaram.

O contato com a Globo
Quem me respondeu foi alguém ligado à produção, que, em tese, teria passado “todas as informações” sobre como é uma pessoa autista. Disse-me que a novela iria mostrar uma moça Asperger. Estranhei (mais do que já havia feito), pois não seria possível que uma única pessoa, um homem, ainda que aparentemente no espectro, saber, afinal, como é uma mulher na condição de Asperger. Se nós, aqui no Brasil, mal conhecemos a síndrome no sexo masculino, que é dita, por enquanto, ser a mais prevalente entre os dois sexos.
A síndrome de Asperger entre as mulheres é ainda tão misteriosa por aqui, que até mesmo nós (eu inclusive), que vivemos a condição de Asperger, sabemos ou temos espaço para explicar como funciona, o que acarreta, em que nos diferenciamos dos Aspergers homens, as nossas dificuldades, os desafios, enfim, o que é ser Asperger no sexo feminino.
Portanto, uma moça com síndrome de Asperger, ou uma moça com autismo clássico, não poderia ser contada por um único consultor – e do sexo masculino. Mas, enfim, foi com isso que a produção da Globo se contentou, apesar dos infinitos recursos que tem, no sentido de fazer um laboratório com a atriz que faria o papel de Linda. Que, com o desenrolar da novela, começou a imitar… a Carley (menina autista).

Asperger ou autista?
Logo nos primeiros capítulos, vendo algumas cenas sem sentido, que já começavam a confundir o telespectador, fosse ele de alguma forma ligado ou não ao autismo, fiz novo contato com a mesma criatura, quando perguntei: “Mas, afinal, a Linda é uma autista, uma Asperger, ou o quê?”
A resposta que eu obtive, uma resposta resignada e parecendo bastante afinada com a produção, posição inusitada para um Asperger (que normalmente não aceita situações ambíguas), foi:
“Depende. Ela está entre autista grave e Asperger. (sic) A produção é que vai decidir. (sic!) Conforme o rumo que tomar a audiência da novela, eles vão modificando a personagem.” (sic!!!)
O mesmo que o homem do tempo dizer: O tempo? Depende. Pode vir uma grande tempestade ou podemos ter um tempo estável. Conforme as pessoas quiserem que seja.
Claro. Parte da confusão começa neste ponto. A Rede Globo não iria se preocupar em dar capacitação ao pessoal envolvido com a novela, desde atores até o pessoal da produção. Eu disse capacitação, e não pinceladas. Mas a novela ainda tem outros componentes, que fazem dela o que ela é: um prato de lagosta misturada com macarrão e rabanada. Uma história sem pé nem cabeça, em geral, a partir do décimo capítulo (quando o roteirista começa a se perder).

A revolta dos pais de autistas e dos Aspergers e autistas adultos
Todos se manifestaram. Alguns, dizendo que valia a pena falar de autismo, ainda que mostrassem tudo errado. Outros entenderam que falar de autismo da forma tão caótica, contraditória e deturpada, incluindo-se aí as reações da família de Linda, as “sessões de terapia”, o namorado salvador, tudo isso contribuía de forma negativa para que o autismo fosse mais desconhecido e mal interpretado do que já é.
Assim, vejo muita gente desapontada, e com justa razão, com os rumos que a personagem Linda tomou, bem como os demais personagens em torno de Linda e da questão do autismo.
Desapontados com justa razão, porém com a expectativa muito alta, se assim se pode dizer, enganados pela propaganda da novela e por não conhecer de roteiros, que, afinal, não é obrigação de nenhum telespectador.
Tentei avisar. Previa a angústia que se seguiria quando a novela fosse apresentada. Dizem (e o engano continua) que Aspergers não têm empatia, quando é bem o contrário. Senti, logo no início, que não queria ver tantas pessoas e tantos amigos grudados na telinha, iludidos, esperando “o milagre”.
Postei em vários grupos do Facebook o mesmo comentário, que poucos leram ou consideraram: ali eu reproduzi a conversa que tive com o consultor contratado pela Globo. Mas meu aviso não fez sequer cócegas no pensamento de alguém.

Como é feita a novela?
Então, imaginando que prestem alguma atenção a esta postagem e que tenham lido até aqui, vou explicar como é feita uma novela. De maneira bem geral, na Globo, funciona assim:
1. Primeira etapa. O tema da novela é escolhido em função da audiência das novelas anteriores. A Globo perdeu pontos? Vamos ver o que podemos trazer para captar a atenção de mais telespectadores. Aí, alguém surge com um tema interessante. O autismo, por exemplo. Algo que está começando a atrair os olhos das pessoas somente agora, mas enfim, agora. Vamos de autismo, então! Quantas pessoas a mídia diz que estão envolvidas? Dois milhões? Que ótimo. Um número bem significativo para se começar uma história.
2. Segunda etapa. Na Globo, se isso mudou eu não sei, mas toda novela é “baseada” em alguma das tramas de Shakespeare e deve ter seus principais componentes como personagens principais. Romeu e Julieta, por exemplo.
Desnecessário dizer que ninguém ali leu Shakespeare – e nem é o caso. Basta que saibam o resumo do resumo do resumo da história – e isso a Globo tem nos registros de roteiros. Que, basicamente, contém um herói, um vilão, um santo, um “atrapalhador”, um grupo de pessoas e um local onde as coisas se passam.
Além dos personagens principais, há os personagens secundários, que em geral são estereótipos (personagens que não têm conflito – são sempre a mesma coisa, do mesmo jeito, chova ou faça sol na história).
Há em seguida os figurantes, que passam no fundo, o garçom que serve um café, um pé aparecendo, pessoas andando na rua, ao longe, por exemplo).
3. Terceira etapa. Há dois ou três personagens principais, assim como há outras histórias correm em paralelo para dar movimento à história, e eles são divididos em núcleos. Há, portanto, o “núcleo da Linda”: a própria Linda e pessoas ligadas mais diretamente a ela. Há outros núcleos e neste caso, como não vejo a novela, não saberei nomear. Mas, suponhamos, pode haver um núcleo do namorado da Linda: a família e os amigos dele, a casa dele etc. E outros ainda.
4. Quarta etapa. O roteirista encarregado, em geral, possui uma equipe. Ele não daria conta de escrever sozinho o dia-a-dia de todos os personagens. Assim, cada equipe, em geral de roteiristas novatos, e sem muita experiência de vida, pela pouca idade, fica encarregada de desenvolver um núcleo. Isso quer dizer, escrever um mini-roteiro por dia e tudo muito rápido, semanas antes daquela cena ir ao ar, pois os atores precisam ensaiar ou pelo menos ler o roteiro.
5. Etapa cinco. O caos completo. Imagine cada grupo escrevendo, em separado, a história de um núcleo, sem conexão uma história com a outra. Bem como a história de cada personagem principal, sem o tempo devido para os roteiristas anônimos (só o principal aparece) se comunicarem entre si como deveriam. Em poucos capítulos, a novela se transformou numa Torre de Babel, com personagens se chocando uns com os outros na história. Por exemplo, cenas da terapia de Linda precisam ser enxugadas, pois, suponhamos, o ator que faz o terapeuta teve uma indisposição e não pode gravar naquela semana. Ou porque outros personagens precisam aparecer mais, se ainda não gravaram. A história de Carley surge na mídia e alguém se lembra de “aproveitar o gancho” e escrever uma cena para Linda. Pronto, uma Asperger vira uma autista. No dia seguinte, ela é Asperger outra vez, se outra situação parecida ocorreu.
Enfim, considero a novela, tal como é feita, de improviso, como um compasso com seu eixo fincado de maneira frouxa. Sem poder traçar um círculo perfeito, traduzindo, sem poder delinear um personagem coerente.
A questão do autismo, para a Globo? Vai bem, obrigado. Pois todo mundo, do universo autista ou fora dele, contra ou a favor, está como a Globo queria: com os olhos grudados na telinha, seja para aplaudir, para “aprender”, para se reconhecer na história ou não, ou simplesmente porque é hora da novela – e ela está falando de autismo.
Portanto, tudo o que a emissora quer é a sua audiência.
Considero isso o mais sórdido dos negócios: aquele que lida, de maneira leviana e inconsequente, com a Esperança das pessoas.
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Agora, cá entre nós, os únicos interessados. Nós precisamos ir muito além de “falar de autismo”.
Também precisamos, com urgência, falar com os autistas.
Nada sobre nós sem nós. Os autistas agradecem.
Essa novela, para ter sido minimamente verossímil, com mais dados de realidade, teria que ser feita, dirigida, produzida e alimentada por diferentes pessoas autistas e com atores autistas no núcleo central.
E pela qualidade que teria, então, a novela, os autistas empregados bem poderiam estar ganhando remuneração dobrada.
Nem mais, nem menos.
Mas isso, aqui, nos tempos de hoje, talvez seja o mesmo que falar da ficção da ficção.

Ana Parreira
Campinas, 29 de janeiro de 2014
Contato: villa.aspie@gmail.com

Para saber mais, veja um artigo muito bom de Cyntia Beltrão:
http://femmaterna.com.br/autismo-protecao-e-autonomia/